segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Cartas para a minha avó.


Querida vó.
Aqui vai mais uma carta para você, alias, faz tempo que eu não lhe escrevo.
Tenho sonhado muito com você, de fato isso é bom, da para matar a saudade, mas o lado ruim é que em todos os sonhos é dos seus últimos meses, que você está muito doente e eu continuo cometendo os mesmos erros.

Até hoje me pergunto como eu não vi os sinais.
Até hoje me pergunto porque eu não encontrei algum jeito de ir aos médicos com você mesmo você não deixando ninguém ir junto.

Até hoje me pergunto porque você não nos contou.
Talvez, não queria nos preocupar, eu entendo, parte de mim, talvez, faria a mesma coisa.
Mas você não pensou que uma hora a verdade iria aparecer, mesmo que tarde demais?
Você não pensou em como iriamos fazer de tudo para recuperar o tempo perdido mesmo sabendo que é Deus que decide a hora de cada um?

A largada tinha sido dada há muito tempo atrás e mesmo na reta final, nós corremos por você.
Porque nós amávamos você, mesmo com todas as nossas brigas e discussões, nós amávamos você, assim como você também nos amava, cada um com seu jeito torto de mostrar, mas acredito de verdade que havia muito amor.

E apesar de sempre sonhar com você doente, mesmo sempre renovando as lembranças de como era antes disso tudo a força, mesmo cometendo os mesmos erros da realidade nos sonhos, parte de mim não quer que isso acabe, não quero deixar ir o pouco que sobrou de você dentro de mim.
E sempre tento me lembrar das coisas boas que você me ensinou em vida.
Se eu sou realmente uma boa pessoa como dizem por aí, tenha certeza, que foi porque você e a minha mãe me criaram muito bem, tudo o que vale apena em mim, foi pq vcs me amararam e me guiaram com a graça de Deus sempre conosco.

Hoje passei mal no serviço vó, mas não é a sua culpa.
Eu estava no banheiro e escutei um alarme tocando um pouco longe dali, estava baixinho.
E então me veio na mente a cena de você deitada na cama, no hospital, sozinha e o alarme do seu monitor começa a tocar, eu me lembro do corredor dos quartos, me lembro do hospital, onde fica seu quarto, o refeitório, eu me lembro de tudo, todos os detalhes, só não lembro do rosto dos profissionais da saúde que cuidaram de você, mas de resto lembro de tudo e nessa mesma imagem na minha cabeça, escutei os sons dos sapatos batendo no chão e grande velocidade, eles estavam correndo para te atender, mas assim como nós, eles chegaram tarde demais da conta, você já havia partido.
E eu consigo escutar a enfermeira te chamando pelo nome, tocando seu ombro, tentando te acordar e conforme os segundos iam passando, ela percebendo que você já havia partido, apertava o botão de emergência rapidamente, diversas vezes, para que o médico chegasse logo, mas como nós, como eles, o médico também chegou tarde demais.
Eu perdi meu ar, eu passei mal, eu precisava respirar logo e não conseguia.

E além de tudo o que errei com você, eu nem fui te ver em sua última semana.
Eu não conseguia, juro por tudo nessa vida, que eu fui fraco demais.
Eu queria poder voltar no tempo, pelo menos naquela semana e ter ficado com você todos os dias.
Queria que de alguma maneira, existisse um jeito desta carta chegar até você ou das minhas palavras chegarem no seu ouvido, sabe?

Espero que um dia, a gente se encontre nos meus sonhos e você esteja bem, como antigamente.
Mas não quero que você deixe de aparecer, eu não posso te deixar ir.
Mas acima de tudo, eu espero, do fundo do meu coração, que você esteja bem.
Gosto de pensar que você encontrou seus pais e seus irmãos que foram antes de você.
Que você encontrou também o Tio Sérgio, o Tio Freire, o Vizinho e principalmente o Zé Felipe.
Gosto de pensar que vocês estão em festa no céu, que é um grande reencontro e uma bela festa.
Talvez isso seja ilusório, mas acho que para quem ficou na terra para continuar a missão, acaba encontrando uma ilusão, uma desculpa, para que a dor da perda seja suportável.
Para que a ausência do ente querido não esmague a gente.
Talvez não seja justo, mas não da pra ser de outra maneira.
Pelo menos nos dois primeiros anos deve ser assim.

Já faz 6 meses desde que você nos deixou, mas parece que já faz um tempo maior.
Você sempre soube ser uma pessoa marcante que todos gostavam.
Agora, eu não consigo entender o pq vc não nos contou, não nos deixou tentar te ajudar, mas talvez um dia, eu possa vir entender, mais tarde, mais adulto, eu não sei.

O Matheus está bem, meu pai também está.
Mas meu pai tomou seu lugar na parte de fazer mil perguntas por dia rs.
Eu também estou bem, ainda trabalhando lá na TV, ainda raspando o cabelo no zero, coisa que te deixava louca, atrás de uma nova tatuagem rs.
Minha mãe esta bem, bom, pelo menos na maior parte dos dias, as vezes ela deve chorar de saudades também, mas acho que ela espera todo mundo ir dormir, para que suas lágrimas não sejam interrompidas ou até sofre durante o dia, mas não fala nada.
Bem, você sabe como ela é, não é mesmo? Rs.

O Luciano também está bem.
A Soraya está bem tbm, teimosa como sempre, mas está bem.
O Lucas já esta terminando o colegial, o Thiago está cursando o primeiro ano já, acredita?
Os dois estão enormes.
A Sabrina continua morando com o marido dela, e a Natália está ficando grande também.
Todos estão bem.
Estamos conseguindo manter as contas, o que é bom.
E tenho certeza de que a fé em Deus que você sempre nos ensinou a ter, desde pequenos, todos continuamos com ela no coração.

Lembra quando seu corpo havia chegado no velório, todos foram tomar banho e trocar de roupa e fiquei com você?
Só nós dois, sozinhos?
Que só nesse momento que eu tive que coragem de te contar que sou trans e pedir seu perdão por não ter sido a neta que vc queria?
Que te contei o que é trans e que a gente não escolhe isso?
Que te agradeci por tudo o que vc fez por mim em vida e que não poderia imaginar a vida sem vc?

Queria que seu corpo tivesse sido enterrado em algum cemitério aqui por perto.
Nós nunca acreditamos nisso, mas seria legal poder "visitar você.", tipo, desabafar mesmo que você não esteja ouvindo sabe, talvez seja mais libertador do que escrever, eu não sei.
Eu lembro que a cada minuto que ia passando e a hora do seu enterro chegando, eu torcia, eu gritava dentro de mim para q vc levantasse e tudo não era nada além de uma brincadeira sem graça ou de um erro médico.
Até mesmo quando o caixão foi fechado e levado para o cemitério, antes de enterrarem, eu fixei o olhar em vc, queria muito, mas muito mesmo que vc me desse um sinal, qualquer sinal dizendo que vc ainda estava ali, eu faria um escândalo para abrirem o caixão e te tirarem de lá.
E depois que enterram você, todos já estavam caminhando de volta para os carros e ali eu fiquei, parado, olhando como a vida de uma pessoa que muito amei acabou.
O Thiago, que estava lá também viu e voltou para me puxar de volta para a realidade.
O jogo da vida havia acabado e não tinha absolutamente nada que pudêssemos fazer.
Você havia zerado o jogo da vida, uma das melhores jogadora que conheci.
O troféu era seu, só seu.

É difícil para quem fica, não tem jeito, é preciso seguir em frente pq a vida continua.
Mas...
Ah! Esqueci de te falar da Kiara, ela está bem tbm, mordendo a gente como sempre.
Sua irmã Rose as vezes vem jogar cartas comigo, é bom, distrai, embora vc não gostava que jogássemos rs.

Não se preocupe, estamos todos, de uma forma geral, bem.
Tente descansar, desfrutar da paz que tanto almejou.
Ficar ao ladinho de Deus que vc tanto lhe foi fiel.

E sempre, sempre, sempre, sempre, amaremos você.
Nunca lhe esqueceremos.
Eu prometo.

Um dia nos encontraremos de novo, todos nós, todos juntos, para sempre.

Um grande abraço.
Com todo meu amor.

Pedro.

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