sexta-feira, 26 de outubro de 2018

João W. Nery


Hoje, por volta das 16hrs, faleceu João W. Nery, o primeiro trans do Brasil praticamente, eu era fã desse cara, cheguei a conversar com ele algumas vezes pelo Facebook, sobre profissionais que sabem atender trans, sobre o caminho a trilhar, a dificuldade de enfrentar a batalha sozinho e o medo que me faz voltar duzentos passos para trás e a dificuldade de me levantar toda vez que eu tombo.

Ele lançou os livros Viagem solitária 30 anos depois e Vidas trans, li os dois, na verdade, o viagem foi o primeiro livro que li sobre transexualidade, que clareou minha vida no mundo trans, quando li o post dele falando sobre o câncer ter chegado ao cérebro logo pensei que ele não teria mais tanto tempo, só não achei que seria tão pouco tempo, queria que tivesse dado tempo dele ter visto o lançamento do seu livro sobre trans da terceira idade. Eu não o conhecia como muitos tiveram a oportunidade, mas sei que ele foi um guerreiro do início ao fim, que levantou todas as vezes que caiu, que se recuperou todas as vezes que sangrou com ferimentos da sociedade, sei que ele não jogou a toalha nem em seu último minuto, ele tentou e tentou mais do que qualquer trans que eu conheci até hoje e eu queria ter o conhecido pessoalmente, mas não consegui e queria tbm ter pelo menos 50% da força que ele tinha, da garra, de acreditar que iria conseguir, que só iria parar quando chegasse no topo.

Ele sabia do tamanho do preconceito dentro da comunidade LGBTQI, inclusive, em um dos seus últimos comentários, ele pediu que nós trans, continuemos a luta, pediu que tenhamos mais união entre nós e acima de tudo, lembrou, o que todo mundo deveria estar careca de saber, que não precisa ter a aparência correta, não precisa se hormonizar, ter barba ou fazer a cirurgia sexual, basta se reconhecer no gênero masculino, sempre foi muito sábio ao escolher as palavras corretas para falar sobre um assunto que ainda, infelizmente, é muito polêmico e uma caralhada inteira de preconceito.

Eu me emocionei com todas as declarações que ele postou, cada palavra, cada frase, até as virgulas e pontos finais. Eu consigo compreender completamente que um dos desejos dele é que continuemos a luta, a sorte, é que a continuidade desta luta não depende só de mim, porque sinceramente meus amigos, não sinto mais as minhas forças em mim, eu sei que ele zerou o jogo da vida e que agora, depois de tantas décadas de luta, vai poder finalmente descansar em paz, mas eu não sinto mais as minhas forças, não estou mais com vontade de lutar, talvez, seja apenas temporário, quando o luto passar, pela perda deste grande companheiro, tudo volta ao seu lugar, eu não sei, mas é que como que foi morrer justamente a pessoa que graças a ele hoje, nós trans, podemos respirar um pouco melhor?
E agora? Quem será nosso professor? Quem irá nos orientar? Nos guiar? Quem teremos como exemplo? Por que por exemplo, alguns trans depois que fazem a cirurgia e se hormonizam, esquece de onde vieram, esquecem do começo e de tudo o que passaram e jogam o preconceito sem sentido para cima de nós, pré-t e ai vira uma bola de neve, o que deveria ser um grupo de irmãos trans se ajudando.

Ah! E para quem leu meus livros, foi João que me incentivou a escreve-lo ou vocês acharam que eu tive a ideia sozinho? Nem em pensamento né galera.
Mas sei lá gente, sei que ele morreu de câncer e não de agressão física ou suicídio, não sei se vocês me entendem, mas a sensação que dá é que a música acabou na metade e o silêncio tomou conta.

Afinal, quando me assumi, achei de verdade que eu estava ensinando as pessoas ao meu redor sobre a transexualidade, sobre o respeito a identidade de gênero, sobre a importância de tratar uma pessoa trans segundo o sexo a qual ela se reconhece, mas a verdade é que eu estive enganado o tempo todo, não ensinei ninguém. Claro que ganhei o direito de ter meu crachá com nome social, e-mail com nome social e tudo mais, mas sempre tem aquelas pontas soltas, sabem?

Por exemplo, no trabalho eu só uso um banheiro, que fica no corredor da minha sala, eu não tenho coragem o suficiente para usar qualquer outro banheiro, porque eu sei como as pessoas ainda me olham, claro que não são todas as pessoas que trabalham lá, mas a maioria das pessoas que não convivem comigo diariamente, mesmo não querendo assumir isso, ainda me olham de lado e sei lá, sinto como se tivesse invadindo o espaço deles, apesar de me reconhecer como homem também, então é bem complicado, porque as vezes estou lá fora fumando e da uma dor de barriga eu tenho que subir correndo até o último andar da torre para usar o banheiro, eu sei que eu não posso reclamar, que é só abrir a porta do banheiro mais próximo e entrar, mas não me sinto a vontade ainda e não sei se um dia sentirei, assim como nos banheiros públicos, em dias de frio que estou de blusa, prefiro não usar nenhum banheiro, porque no das mulheres elas ficam bravas, afinal, a blusa esconde meus peitos, no dos homens sempre tem alguém encarando ou cochichando.

Sem contar com as "brincadeiras" que escuto no dia a dia que eles nem imaginam que algumas dessas brincadeiras podem cortar na alma e eu como não quero briga, não quero clima chato nem nada, acabo que ficando de boca fechada. Brincadeiras bobas como por exemplo um colega que me falou que eu só poderia usar o banheiro masculino quando soubesse usar o mictório, eu poderia ter dito a ele que eu sei usar, inclusive, que eu posso usar se eu quiser, porque a minha prótese me permite isso, eu que não quero, mas ai viriam outros comentários e eu não estava afim de debate, outra brincadeira é que qualquer gesto com as mãos ou a maneira que joga algum objeto, já rotulam como viado, que se eu quero ser homem tenho que me comportar como um, hoje até perguntei qual o problema se eu for viado, porque sinceramente, ser gay não é nenhuma ofensa para mim, nunca foi e nunca será e existem muitos homens trans gay por ai e eu respeito como respeito qualquer pessoa. Minha família ainda não me chama pelo nome social e não me trata no masculino e sinceramente não tenho esperança nenhuma que um dia isso venha acontecer, mas eu tenho sorte, que pelo menos, eles não me privam mais de ser quem eu sou.

Acho sinceramente que o mundo tem muito o que aprender ainda, a sociedade tem que abrir a mente mais ainda e as pessoas tem que estarem mais disposta a aprender, talvez, alguém consiga ensinar as pessoas, eu não consegui e não sei se vou conseguir, mas vou continuar tentando ensinar cada pessoa que passa pela minha vida. Não sei se um dia conseguirei mudar meus documentos, achar um endócrino que aceite ajudar a me hormonizar apesar de ser hipertenso e fumante, não sei se um dia vou poder dizer a mim mesmo que esta na hora de fazer a barba, mas o pouco que conquistei, o gostinho de ser quem sou, tem me sido suficiente, é melhor do que não ter sentido nada.

Enfim, espero de verdade que João finalmente tenha encontrado a paz, o sossego, lutou tanto, por tanto tempo, que merece muito. Espero que ele tenha sido feliz como aparentava ser e que consigamos continuar sua luta sem hesitar, sem pensar em parar, por enquanto, eu, Pedro Oliveira coloquei a minha luta trans na pausa, estou cansado, preciso de um tempo, porque não posso entender porque a vida tem que ser tão difícil sendo que eu só quero ser eu mesmo e ser tratado como tal, mas tenho certeza que muitos trans por ai vão conseguir pegar suas próprias forças e fazer a diferença.

Como João disse uma vez, faremos um novo mundo.

Um grande abraço,

Pedro.

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