sábado, 10 de março de 2018

Carta para mim!


Cartas para mim.

Querida Pri, o dia o qual nos despedimos esta se aproximando cada vez mais, então lhe escrevo para te dizer que a sua existência não foi em vão e nunca será. Eu não tenho vergonha de falar sobre você, eu não tenho vergonha de contar a sua história, eu não tenho vergonha de nada do que aconteceu, porque a verdade Pri, é que hoje eu existo porque você foi corajosa, você foi guerreia, foi batalhadora e persistente, a minha existência só esta acontecendo porque você resistiu quando tudo estava perdido, pronto para ser o ponto final, de certa forma demorou para que você pudesse ceder e entender que você precisa me deixar existir e quando isso aconteceu, você colocou a vírgula bem em baixo do ponto final, era preciso que a história continuasse, é preciso que ela continue.

Você foi forte Pri, eu sei que você não acredita nisso, mas você foi, eu juro a você.
Foi você foi forte quando ainda era apenas uma garotinha, tentando entender porque as coisas não eram do jeito que você imaginava, de tantas pessoas, porque tinha que ser você a garota diferente, que não se sentia uma garota como todas as outras.

Você foi corajosa, quando contou ao seu primo de parte do seu pai, que preferia ser o garoto na brincadeira de casinha e eu não lembro, mas acho que ele compreendeu as coisas, então ele topava ser a mulher e era um segredo só de vocês dois, era uma brincadeira inocente, não tinha qualquer maldade, você brincava de representar um personagem homem, era isso.
Mais tarde, já morando no casarão, quando você ainda não tinha desenvolvido seios, gostava de tirar a camisa no futebol, que jogava com as gatinhas que você tinha ou até sozinha mesmo e como você adorava aquilo e também não conseguia entender o porquê, pois as garotas da sua idade ansiavam pelo primeiro sutiã, menos você.

Você foi guerreira quando veio à primeira menstruação, você desejou morrer, você não queria aquilo, você não queria que o seu corpo desenvolvesse as funções de corpo de uma mulher, você não queria que os seus seios crescessem, você não conseguia entender porque tudo aquilo estava acontecendo, você estava assustada, com medo e você não podia conversar com ninguém, porque ninguém seria capaz o suficiente de entender naquela época, até porque, dentro da família nunca tinham visto nada parecido ainda, você era a primeira, a que veio para abalar a história da família, mudar as coisas, o rumo, mudar tudo.

Você teve que aguentar tudo sozinha, você não podia falar nem com os seus amigos, ninguém conseguiria entender você, porque no fim, nem você mesmo entendia o que estava acontecendo, imagina explicar para alguém. Naquela época não existia de fato a palavra transexual, quer dizer, existia, mas não na sua vida, naquela época, as crianças transexuais não recebiam apoio como as crianças de hoje recebem, naquela época era loucura, era doença gravíssima, era motivo de preconceito de morte, não estou dizendo que agora somos completamente livres, mas é menos complicado.

Lembra quando uma tia sua teve um preconceito nojento contra você porque você estava usando boné enquanto passava uns dias na cidade dela? Sim, eu me lembro disso até hoje.
Lembra no ginásio, quando a mãe foi chamada na escola, porque o preconceito da diretora com a sua jaqueta de couro falou mais alto? Ou suas professoras da faculdade falando que quem usa boné esta querendo esconder a sua identidade?

Lembra das piadinhas que você tinha que ouvir no colegial? Como você se sentia deslocada no meio daquelas meninas super femininas? Como você se sentia estranha e triste? Lembra do quanto de paciência lhe foi exigido toda vez que a mãe te enfiava em roupas que você não queria vestir? Quando ela ficava horas e horas penteando seu cabelo naquele secador quente pra caramba? 

Depois vinha a chapinha, vinham às químicas, as maquiagens, sempre tinha alguma coisa.
Então você descobriu que tinha sentimentos mais fortes por garotas e isso dificultou mais ainda as suas tentativas de ser a filha que a mãe queria. Isso não podia acontecer, não é mesmo? Estava fora dos seus planos! Você tinha que encontrar uma maneira de fazer as coisas darem certo, tinha que existir um jeito, quem sabe se começasse a ficar com garotos, você passaria a gostar? Lembra? Teve o Rodolfo, o Rodrigo e o Rafael na escola. No colegial teve o Sidnei, o Alex, o Ramon, Gabriel, Fábio e outro Rafael.

Deus sabe o quanto você tentou. Ele sabe que você tentou gostar de garotos, o quanto você tentou ser uma garota, o quanto você se esforçou para ser a filha que a mãe queria, o tanto que você desejou parar de dar problemas para ela, o quanto você rezou para que tudo ficasse “normal” ou que acabasse de uma vez por toda.

Quantas vezes você pensou em suicídio, desde quando morava na Rua Tito, caio Graco, Vespasiano e agora caio Graco de novo e graças a Deus você conseguiu resistir a todas tentativas que te encontravam, você se lembrou de como magoaria Deus e como não iria nunca mais ver a mãe e isso te fortaleceu, ainda bem ou hoje eu não teria existido e muito menos não teríamos aprendido que podemos ser uma pessoa melhor, independente do nosso sexo.

Lembra a amiga que a mãe tinha? Que te chamava de ogra? Era fácil julgar sem saber o porquê você tinha aquele jeito meio torto, mas justo. Lembra quando essa amiga da mãe te maquiou no salão que ela tinha, na frente de todo mundo e você teve que fingir que gostou, porque você trabalhava para ela? Lembra das vezes que ela te fez desejar estar morta porque falava muito sobre ser mulher, como ser e como a falta disso feria a mãe? As longas conversas que ela tinha com você e fazia você se sentir culpada por toda a infelicidade da mãe?

Você lutou uma guerra inteira sozinha Pri, mesmo quando estava caída no chão sangrando, você continuava caminhando, você sabia que enquanto estivesse viva não podia desistir, mesmo rastejando, implorando para que parassem, você continuava em frente. Mesmo morrendo de medo, inundando em suas próprias lágrimas, você continuava. Não só a família, os colegas ou os amigos, o mundo te feriu de uma maneira que ninguém conseguiria imaginar que você fosse levantar novamente, a apunhalada foi tão forte, a queda tão lenta e silenciosa, você caindo enquanto todos estavam em pé, parados assistindo, vendo sua queda, vendo sua morte, mas você de certa forma sabia que no minuto q desistisse, eles venceriam e novamente lá estava você em pé de novo, sangrando de uma maneira desesperadora, mas você sabia que tinha que continuar, que apenas a morte, literalmente, poderia te parar e foi graças a essa garra, a essa força, essa crença, essa fé, que hoje eu posso existir.

E só pensando nisso tudo eu consegui entender, porque eu me enfiei no banheiro e chorei pra caramba, ontem, lá no serviço, depois que havia saído do banco, com o meu novo cartão, com o nome social nele e enquanto chorava, pensava em alguém que eu pudesse procurar naquele momento, que pudesse me abraçar, me acalmar e falar que tudo ficaria bem, eu estava assustado, tremendo feito uma criança e eu não sabia por que eu estava assustado e isso me dava mais medo ainda, porque eu não entendia, eu não deveria estar feliz? Eu não deveria estar comemorando, pulando de alegria, pagando uma rodada aos amigos? Porque eu estava li no canto chorando? E eu tinha que me recompor logo, precisava voltar para a sala, para as meninas poderem almoçar e eu ficar atendendo os telefones. 

A única pessoa que ainda estava na empresa que conseguiria me entender, era a Bruna, mas ela não podia sair do local de trabalho dela, a chefe mataria ela e eu não poderia descer lá aos prantos e pedir um abraço porque a empresa inteira já malicia a gente, eu não podia dar mais motivos e sei de alguém que encheria a porra do meu saco, me mandando mensagens perguntando se eu estava chorando no meio da recepção abraçando ela porque a gente teria terminado um relacionamento que só existe na cabeça desta pessoa e a verdade é que a Bruna é uma grande amiga, uma amiga espetacular, embora às vezes eu solte algumas piadas, eu a respeito como uma irmãzinha que quero proteger do mundo inteiro, mas sim, mesmo com muito medo e tremendo de tanto chorar, eu soube pensar nas consequências que viriam se eu aparecesse lá, então a chamei no chat da empresa e falei o que estava se passando, ela foi ultra,mega e hiper compreensiva e fofa comigo, mas eu havia dormido em cima do teclado, aquele sono pós-choro, sabe? 

Havia me invadido, fui ver as mensagens dela só depois, quando já não dava mais para conversar porque tinha chegado para mim alguns casos de trabalho que eu tinha que cuidar e não podia deixar para depois e também tinham as coisas que eu tinha que carregar para o parque frente à empresa para o projeto da semana da mulher que a empresa tinha feito e pra completar, já era a segunda noite que eu estava dormindo mal o suficiente para me deixar acabado o dia todo.

À noite fomos para o bar, pensei que relaxaria, afinal, estava com meus melhores amigos, bebendo cerveja, ok, eu não gosto de original e era isso que estávamos bebendo, o que me fez parar cedo, mas estava um clima gostoso, a gente estava rindo muito, mas estávamos todos cagados, eu demorei demais para perceber que não era só eu que estava cansado, destruído e desejando a minha cama, todos os outros também estavam, porque embora eu ache que só eu tenho guerra pra lutar até o fim da vida, a verdade é que eles também tem e levou tempo demais para eu sacar isso, eles pararam de beber logo também, fomos embora cedo, não fechamos o bar e pela primeira vez a conta não tinha dado nem 200 reais, acho que ninguém estava acreditando, acho que nem o atendente do bar acreditou, já que ali é o lugar que mais frequentamos.

E somente agora, somente hoje, eu consegui entender, que todo o medo que eu estava ontem, é porque estou com medo de me despedir de você Pri, porque é uma grande missão, uma grande guerra, é algo muito maior do que podemos colocar em palavras, não é só uma adaptação de sexo e gênero como dizem, é algo muito maior e eu tenho que assumir daqui pra frente, o medo de decepcionar você é tão grande que me fez pensar se eu tentei o suficiente ser quem todos esperavam que eu fosse, quem a mãe esperava que eu fosse? Será que eu não podia tentar um pouco mais? Será que 30 anos era suficientes?

É uma honra continuar a história, assumir daqui pra frente o volante da nossa vida, mas e se eu não for forte como você? E se eu não aguentar como você aguentou? E se eu não tiver esperanças o suficiente? E se eu não conseguir rastejar o quanto você conseguiu quando a vida me derrubar? Só hoje eu percebi que todo o medo que me apunhala todos os dias, na verdade é medo, medo de continuar daqui pra frente sem você. Todo o passo que eu dou, toda a conquista para a minha existência ser real, é você dando um passo para trás, se distanciando de mim, saber que você esta sumindo, que você esta indo embora, é assustador.

Saber que agora serei o único responsável por tudo o que acontecer, por todas as consequências das minhas escolhas é terrivelmente assustador e eu simplesmente não sei o que fazer, é uma aposta muito alta, com grandes riscos, que tenho medo de assumir e perder.

Mas por outro lado, a verdade é que nós dois estamos cansados. Você esta cansada de lutar uma guerra que não é sua, eu estou cansado de viver na sombra por causa do medo, mas precisamos ser adultos e acima de tudo, precisamos encarar a vida, aceitar nosso destino e aprender, de alguma maneira, viver sem a culpa nos comendo por dentro a cada dia que passa. 

Ninguém pode lutar por nós, ninguém pode vencer isso e eles não podem continuar ganhando todas as batalhas.
O STF facilitou para mim, quem sabe, daqui uns dois, três ou quatro meses saia no diário oficial à decisão e então eu possa ir no cartório solicitar a mudança dos nomes nos documentos e quando isso acontecer, talvez eu chore de novo, principalmente porque será nossa despedida final, você irá sumir, mas nunca será esquecida, estará eternizada na nossa história que me recuso a chamar de minha, você fez a sua parte, lutou até onde podia, é a minha vez agora.

Uma pena que a vó não saberá nunca dessa trajetória de vida que tivemos, quando eu assumir o volante, será um caos, mas iremos superar isso também, assim como superamos o caos com a mãe, não sei se ela um dia respeitará a minha identidade, mas queria muito que ela tivesse conhecimento da sua história, da sua luta, da sua garra, mas tudo bem sabe, porque ela esta esquecendo as coisas, ela logo esqueceria isso também, ela não lembraria que um dia contei uma das histórias mais marcantes, talvez ela nunca saiba a minha identidade, mas ainda assim é preciso continuar, vou caminhar sozinho daqui pra frente, mas eu sempre, sempre me lembrarei de você e isso eu te juro, eu te prometo, até o fim das nossas vidas.

E espero de verdade não te decepcionar, ser tão forte quanto você foi.
Eu já escuto das pessoas que eu sou corajoso, que eu sou forte e tal, eu não consigo acreditar, por mais que as palavras dessas pessoas sejam sinceras, eu não consigo acreditar, mas se um dia eu conseguir acreditar nisso, ainda assim todo o crédito será seu, porque tudo o que aconteceu, que superamos e conquistamos foi graças a você e tudo o que eu posso dizer é obrigado Pri, muito obrigado por tudo, para sempre, muito obrigado.

Com carinho.
Pedro.

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