Cartas para mim.
Querida Pri, o dia o qual nos despedimos esta se aproximando
cada vez mais, então lhe escrevo para te dizer que a sua existência não foi em
vão e nunca será. Eu não tenho vergonha de falar sobre você, eu não tenho
vergonha de contar a sua história, eu não tenho vergonha de nada do que
aconteceu, porque a verdade Pri, é que hoje eu existo porque você foi corajosa,
você foi guerreia, foi batalhadora e persistente, a minha existência só esta
acontecendo porque você resistiu quando tudo estava perdido, pronto para ser o
ponto final, de certa forma demorou para que você pudesse ceder e entender que
você precisa me deixar existir e quando isso aconteceu, você colocou a vírgula
bem em baixo do ponto final, era preciso que a história continuasse, é preciso
que ela continue.
Você foi forte Pri, eu sei que você não acredita nisso, mas
você foi, eu juro a você.
Foi você foi forte quando ainda era apenas uma garotinha,
tentando entender porque as coisas não eram do jeito que você imaginava, de
tantas pessoas, porque tinha que ser você a garota diferente, que não se sentia
uma garota como todas as outras.
Você foi corajosa, quando contou ao seu primo de parte do
seu pai, que preferia ser o garoto na brincadeira de casinha e eu não lembro,
mas acho que ele compreendeu as coisas, então ele topava ser a mulher e era um
segredo só de vocês dois, era uma brincadeira inocente, não tinha qualquer
maldade, você brincava de representar um personagem homem, era isso.
Mais tarde, já morando no casarão, quando você ainda não
tinha desenvolvido seios, gostava de tirar a camisa no futebol, que jogava com
as gatinhas que você tinha ou até sozinha mesmo e como você adorava aquilo e
também não conseguia entender o porquê, pois as garotas da sua idade ansiavam
pelo primeiro sutiã, menos você.
Você foi guerreira quando veio à primeira menstruação, você
desejou morrer, você não queria aquilo, você não queria que o seu corpo
desenvolvesse as funções de corpo de uma mulher, você não queria que os seus
seios crescessem, você não conseguia entender porque tudo aquilo estava
acontecendo, você estava assustada, com medo e você não podia conversar com ninguém,
porque ninguém seria capaz o suficiente de entender naquela época, até porque,
dentro da família nunca tinham visto nada parecido ainda, você era a primeira,
a que veio para abalar a história da família, mudar as coisas, o rumo, mudar
tudo.
Você teve que aguentar tudo sozinha, você não podia falar
nem com os seus amigos, ninguém conseguiria entender você, porque no fim, nem
você mesmo entendia o que estava acontecendo, imagina explicar para alguém.
Naquela época não existia de fato a palavra transexual, quer dizer, existia,
mas não na sua vida, naquela época, as crianças transexuais não recebiam apoio
como as crianças de hoje recebem, naquela época era loucura, era doença
gravíssima, era motivo de preconceito de morte, não estou dizendo que agora
somos completamente livres, mas é menos complicado.
Lembra quando uma tia sua teve um preconceito nojento contra
você porque você estava usando boné enquanto passava uns dias na cidade dela?
Sim, eu me lembro disso até hoje.
Lembra no ginásio, quando a mãe foi chamada na escola,
porque o preconceito da diretora com a sua jaqueta de couro falou mais alto? Ou
suas professoras da faculdade falando que quem usa boné esta querendo esconder
a sua identidade?
Lembra das piadinhas que você tinha que ouvir no colegial?
Como você se sentia deslocada no meio daquelas meninas super femininas? Como
você se sentia estranha e triste? Lembra do quanto de paciência lhe foi exigido
toda vez que a mãe te enfiava em roupas que você não queria vestir? Quando ela
ficava horas e horas penteando seu cabelo naquele secador quente pra caramba?
Depois vinha a chapinha, vinham às químicas, as maquiagens, sempre tinha alguma
coisa.
Então você descobriu que tinha sentimentos mais fortes por
garotas e isso dificultou mais ainda as suas tentativas de ser a filha que a
mãe queria. Isso não podia acontecer, não é mesmo? Estava fora dos seus planos!
Você tinha que encontrar uma maneira de fazer as coisas darem certo, tinha que
existir um jeito, quem sabe se começasse a ficar com garotos, você passaria a
gostar? Lembra? Teve o Rodolfo, o Rodrigo e o Rafael na escola. No colegial
teve o Sidnei, o Alex, o Ramon, Gabriel, Fábio e outro Rafael.
Deus sabe o quanto você tentou. Ele sabe que você tentou
gostar de garotos, o quanto você tentou ser uma garota, o quanto você se
esforçou para ser a filha que a mãe queria, o tanto que você desejou parar de
dar problemas para ela, o quanto você rezou para que tudo ficasse “normal” ou
que acabasse de uma vez por toda.
Quantas vezes você pensou em suicídio, desde quando morava
na Rua Tito, caio Graco, Vespasiano e agora caio Graco de novo e graças a Deus
você conseguiu resistir a todas tentativas que te encontravam, você se lembrou
de como magoaria Deus e como não iria nunca mais ver a mãe e isso te
fortaleceu, ainda bem ou hoje eu não teria existido e muito menos não teríamos
aprendido que podemos ser uma pessoa melhor, independente do nosso sexo.
Lembra a amiga que a mãe tinha? Que te chamava de ogra? Era
fácil julgar sem saber o porquê você tinha aquele jeito meio torto, mas justo.
Lembra quando essa amiga da mãe te maquiou no salão que ela tinha, na frente de
todo mundo e você teve que fingir que gostou, porque você trabalhava para ela?
Lembra das vezes que ela te fez desejar estar morta porque falava muito sobre
ser mulher, como ser e como a falta disso feria a mãe? As longas conversas que
ela tinha com você e fazia você se sentir culpada por toda a infelicidade da
mãe?
Você lutou uma guerra inteira sozinha Pri, mesmo quando
estava caída no chão sangrando, você continuava caminhando, você sabia que
enquanto estivesse viva não podia desistir, mesmo rastejando, implorando para
que parassem, você continuava em frente. Mesmo morrendo de medo, inundando em
suas próprias lágrimas, você continuava. Não só a família, os colegas ou os
amigos, o mundo te feriu de uma maneira que ninguém conseguiria imaginar que
você fosse levantar novamente, a apunhalada foi tão forte, a queda tão lenta e
silenciosa, você caindo enquanto todos estavam em pé, parados assistindo, vendo
sua queda, vendo sua morte, mas você de certa forma sabia que no minuto q
desistisse, eles venceriam e novamente lá estava você em pé de novo, sangrando
de uma maneira desesperadora, mas você sabia que tinha que continuar, que
apenas a morte, literalmente, poderia te parar e foi graças a essa garra, a
essa força, essa crença, essa fé, que hoje eu posso existir.
E só pensando nisso tudo eu consegui entender, porque eu me
enfiei no banheiro e chorei pra caramba, ontem, lá no serviço, depois que havia
saído do banco, com o meu novo cartão, com o nome social nele e enquanto
chorava, pensava em alguém que eu pudesse procurar naquele momento, que pudesse
me abraçar, me acalmar e falar que tudo ficaria bem, eu estava assustado,
tremendo feito uma criança e eu não sabia por que eu estava assustado e isso me
dava mais medo ainda, porque eu não entendia, eu não deveria estar feliz? Eu
não deveria estar comemorando, pulando de alegria, pagando uma rodada aos
amigos? Porque eu estava li no canto chorando? E eu tinha que me recompor logo,
precisava voltar para a sala, para as meninas poderem almoçar e eu ficar
atendendo os telefones.
A única pessoa que ainda estava na empresa que
conseguiria me entender, era a Bruna, mas ela não podia sair do local de
trabalho dela, a chefe mataria ela e eu não poderia descer lá aos prantos e
pedir um abraço porque a empresa inteira já malicia a gente, eu não podia dar
mais motivos e sei de alguém que encheria a porra do meu saco, me mandando
mensagens perguntando se eu estava chorando no meio da recepção abraçando ela
porque a gente teria terminado um relacionamento que só existe na cabeça desta
pessoa e a verdade é que a Bruna é uma grande amiga, uma amiga espetacular,
embora às vezes eu solte algumas piadas, eu a respeito como uma irmãzinha que
quero proteger do mundo inteiro, mas sim, mesmo com muito medo e tremendo de tanto
chorar, eu soube pensar nas consequências que viriam se eu aparecesse lá, então
a chamei no chat da empresa e falei o que estava se passando, ela foi
ultra,mega e hiper compreensiva e fofa comigo, mas eu havia dormido em cima do
teclado, aquele sono pós-choro, sabe?
Havia me invadido, fui ver as mensagens
dela só depois, quando já não dava mais para conversar porque tinha chegado
para mim alguns casos de trabalho que eu tinha que cuidar e não podia deixar
para depois e também tinham as coisas que eu tinha que carregar para o parque
frente à empresa para o projeto da semana da mulher que a empresa tinha feito e
pra completar, já era a segunda noite que eu estava dormindo mal o suficiente
para me deixar acabado o dia todo.
À noite fomos para o bar, pensei que relaxaria, afinal,
estava com meus melhores amigos, bebendo cerveja, ok, eu não gosto de original
e era isso que estávamos bebendo, o que me fez parar cedo, mas estava um clima
gostoso, a gente estava rindo muito, mas estávamos todos cagados, eu demorei
demais para perceber que não era só eu que estava cansado, destruído e
desejando a minha cama, todos os outros também estavam, porque embora eu ache
que só eu tenho guerra pra lutar até o fim da vida, a verdade é que eles também
tem e levou tempo demais para eu sacar isso, eles pararam de beber logo também,
fomos embora cedo, não fechamos o bar e pela primeira vez a conta não tinha
dado nem 200 reais, acho que ninguém estava acreditando, acho que nem o
atendente do bar acreditou, já que ali é o lugar que mais frequentamos.
E somente agora, somente hoje, eu consegui entender, que
todo o medo que eu estava ontem, é porque estou com medo de me despedir de você
Pri, porque é uma grande missão, uma grande guerra, é algo muito maior do que
podemos colocar em palavras, não é só uma adaptação de sexo e gênero como
dizem, é algo muito maior e eu tenho que assumir daqui pra frente, o medo de
decepcionar você é tão grande que me fez pensar se eu tentei o suficiente ser
quem todos esperavam que eu fosse, quem a mãe esperava que eu fosse? Será que
eu não podia tentar um pouco mais? Será que 30 anos era suficientes?
É uma honra continuar a história, assumir daqui pra frente o
volante da nossa vida, mas e se eu não for forte como você? E se eu não
aguentar como você aguentou? E se eu não tiver esperanças o suficiente? E se eu
não conseguir rastejar o quanto você conseguiu quando a vida me derrubar? Só
hoje eu percebi que todo o medo que me apunhala todos os dias, na verdade é
medo, medo de continuar daqui pra frente sem você. Todo o passo que eu dou,
toda a conquista para a minha existência ser real, é você dando um passo para
trás, se distanciando de mim, saber que você esta sumindo, que você esta indo
embora, é assustador.
Saber que agora serei o único responsável por tudo o que
acontecer, por todas as consequências das minhas escolhas é terrivelmente
assustador e eu simplesmente não sei o que fazer, é uma aposta muito alta, com grandes
riscos, que tenho medo de assumir e perder.
Mas por outro lado, a verdade é que nós dois estamos
cansados. Você esta cansada de lutar uma guerra que não é sua, eu estou cansado
de viver na sombra por causa do medo, mas precisamos ser adultos e acima de
tudo, precisamos encarar a vida, aceitar nosso destino e aprender, de alguma
maneira, viver sem a culpa nos comendo por dentro a cada dia que passa.
Ninguém
pode lutar por nós, ninguém pode vencer isso e eles não podem continuar
ganhando todas as batalhas.
O STF facilitou para mim, quem sabe, daqui uns dois, três ou
quatro meses saia no diário oficial à decisão e então eu possa ir no cartório
solicitar a mudança dos nomes nos documentos e quando isso acontecer, talvez eu
chore de novo, principalmente porque será nossa despedida final, você irá sumir,
mas nunca será esquecida, estará eternizada na nossa história que me recuso a
chamar de minha, você fez a sua parte, lutou até onde podia, é a minha vez
agora.
Uma pena que a vó não saberá nunca dessa trajetória de vida
que tivemos, quando eu assumir o volante, será um caos, mas iremos superar isso
também, assim como superamos o caos com a mãe, não sei se ela um dia respeitará
a minha identidade, mas queria muito que ela tivesse conhecimento da sua
história, da sua luta, da sua garra, mas tudo bem sabe, porque ela esta
esquecendo as coisas, ela logo esqueceria isso também, ela não lembraria que um
dia contei uma das histórias mais marcantes, talvez ela nunca saiba a minha
identidade, mas ainda assim é preciso continuar, vou caminhar sozinho daqui pra
frente, mas eu sempre, sempre me lembrarei de você e isso eu te juro, eu te
prometo, até o fim das nossas vidas.
E espero de verdade não te decepcionar, ser tão forte quanto
você foi.
Eu já escuto das pessoas que eu sou corajoso, que eu sou
forte e tal, eu não consigo acreditar, por mais que as palavras dessas pessoas
sejam sinceras, eu não consigo acreditar, mas se um dia eu conseguir acreditar
nisso, ainda assim todo o crédito será seu, porque tudo o que aconteceu, que
superamos e conquistamos foi graças a você e tudo o que eu posso dizer é
obrigado Pri, muito obrigado por tudo, para sempre, muito obrigado.
Com carinho.
Pedro.
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