sábado, 20 de janeiro de 2018

P X P



Outro dia me peguei pensando se fosse possível eu me encontrar com a pessoa que eu fui no passado, o que eu diria a ela. Eu acho que diria que eu juro que estou tentando e da pra ver isso em cada vez que levanto depois de uma grande queda, eu não tenho a coragem que prometi a mim mesmo que teria, talvez, eu nunca tenha, mas eu continuo tentando.




Eu não tenho vergonha de falar sobre a pessoa que eu fui, da personagem que eu criei e representei o papel muito bem aos longos dos anos. Ela era uma mulher, Priscila foi o nome que deram a ela logo que nasceu e ela seguiu seus anos tentando viver dentro dos padrões imposto pela sociedade por questão de sobrevivência.




Ela sempre foi de poucos amigos, mas esses poucos, ela sempre deu valor.




Deu valor a família, aos colegas, amigos e conhecidos. Ela fez muitas coisas boas na vida, ela foi uma pessoa boa sim e como tentou, ninguém pode negar que ela tentou. Não tenho saudades dela, mas também não tenho vergonha, porque ela existiu para que eu pudesse aprender tudo o que eu sei hoje e o que eu tento ensinar as pessoas a minha volta.




Sabe, eu fico voltando a minha mente ao passado, décadas atrás, fico procurando nas lembranças se houve algum momento em algo foi feito e foi quando as coisas começaram a dar errado, mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Uma das lembranças mais frequentes que eu tenho é sobre a dança na festa junina da escola, eu era tão novinho, eu nem estava na 5º série ainda, estava enfiado em um vestido que minha mãe havia comprado para mim e eu lembro que eu olhava para os garotos e me perguntava porque eu não podia me vestir como eles? Porque logo eu tinha que ficar enfiado naquele vestido ridículo, eu não conseguia entender as coisas e isso me desesperava demais da conta.




Eu via os garotos jogando futebol sem camisa, tendo cortes de cabelo legais, andando de skate e podendo mijar no meio da rua e eu não conseguia entender porque eu não podia fazer nada disso, porque eu não conseguia me contentar com as brincadeiras de meninas? Eu me lembro que eu gostava de deitar no gramadinho do colégio e ficar imaginando como seria diferente se eu fosse como os garotos. Quando eu saia com a minha mãe para comprar roupas, eu simplesmente odiava, porque toda a roupa que eu queria para mim, eu sempre ouvia “Isso não Priscila, isso é de homem, venha olhar as coisas desse lado aqui.” Porque meus primos podiam cortar o cabelo arrepiadinho e eu tinha que ficar horas em baixo do secador enquanto minha mãe esticava meus cabelos para ficarem soltos e lisos? Ou antes de ter seios, eu só queria usar a parte de baixo do biquíni e fingia ser sunga...




Já não basta eu ter que ficar ainda representando a personagem em finais de semana e feriados dentro da casa onde moro? Essas lembranças tem que aparecer para me atormentar? Minha mente precisa mesmo ficar procurando por respostas? Voltando para um tempo que não me pertence mais?




Falam que eu sou corajoso, não, eu não sou. Corajosa era a Priscila, que aguentou até onde deu, vivendo da maneira torta porque não podia compreender, não tinha ninguém para conversar, não podia confiar a ninguém, tinha que sofrer sozinha, ela estava sozinha no mundo, sentada no cantinho, no escuro, com o rosto molhando de lágrimas tentando entender porque justo ela que tinha que passar por todo aquele sofrimento. Eu não sou corajoso, eu sequer superei meus obstáculos e quando esta foda demais, eu apelo para os remédios que minha mãe toma, eu não sou forte, forte não se entrega aos remédios assim, ele luta até o último segundo, eu não tenho lutado, como as pessoas podem me chamar de corajoso? Muito pelo contrário, eu não passo de um covarde, de um bosta, de um idiota.




Mas eu tenho sentido que a Priscila esta por aqui, mas que desta vez ela veio dar adeus. Não sei se é pq já me livrei de todas as roupas que não vestem o sexo da minha alma, as fotos e muitas outras coisas ou porque, se Deus quiser, esta chegando o momento em que serei finalmente livre? Estou sentindo ela por aqui, como se tivesse vindo se despedir, como se tivesse dizendo “Agora é com você.”.




Talvez seja porque agora só aqui em casa que eu finjo ser essa pessoa ainda, só falta eu vencer a batalha aqui dentro de casa, porque no momento que essa história falsa acabar, no momento em que a minha avó souber, eu coloco o ponto final na história da Pri.
Eu não a odeio, mas preciso viver, preciso ter paz, sossego, preciso viver de verdade, preciso respirar, preciso deitar minha cabeça no travesseiro a noite sem senti-lo molhado com as minhas lágrimas, preciso ter a paz que tanto anseio. Eu sei que a possibilidade da minha família que mora aqui em casa e no andar de cima de me chamarem de Pedro e respeitarem minha identidade de gênero são quase zero, mas ainda assim sinto ela por aqui, dizendo que esta acabando e agradecendo por eu ter deixado ela viver todos esses anos, mesmo sendo apenas uma personagem. As vezes tenho vontade de perguntar para o pessoal aqui de casa se eles estão prontos para dar adeus, se eles estão prontos para respeitar o meu verdadeiro eu, se eles estão prontos para lidar com a realidade que sempre escondi, mas tenho medo, porque como as chances da resposta ser negativa são grandes, eu não sei se posso me levantar deste tombo. Mas todas as vezes que me chamaram de Priscila hoje, eu senti algo dentro de mim dizendo que esta acabando, que eles estão aproveitando o quanto podem, que as coisas estão chegando ao fim.




Eu não tenho vergonha, Priscila precisou existir para que eu pudesse saber o que sei hoje, ela precisou preparar o campo para que eu pudesse batalhar bem em todas as guerras, ela precisou ser forte e segurar todas as porradas da vida, para que eu pudesse continuar respirando fundo toda vez que me recuso a levantar de um tombo. Ela tinha um coração muito bom, fez faculdade de enfermagem porque acreditava que sua missão na terra era cuidar dos doentes e feridos, eu sei que eu interrompi essa história antes da hora, mas tudo o que aconteceu até aqui, me ajudou e me ajudará daqui pra frente.




Eu sinto que esta chegando ao fim, espero que sim. Eu sempre vou me lembrar dela com muito carinho, mas as lembranças dos momentos que ela passou, que ela viveu estão se apagando da minha memória, as coisas estão ficando para trás, talvez esteja abrindo caminho para as novas coisas que virão a seguir, eu espero, no mínimo, que o coração de ouro que ela teve, eu possa manter comigo até o fim dos meus dias e que eu possa ser um homem melhor, uma pessoa melhor, um sonhador melhor, que eu possa continuar levantando até chegar o dia da minha glória, sim, eu sinto que esta chegando ao fim e ela esta aqui para se despedir, acho que a minha família também sente isso, acho que talvez, mesmo que não estejam percebendo, estão se despedindo também.
Vamos ver o que o futuro guardou para nós.
Um abraço,
PD.


Nenhum comentário:

Postar um comentário